“As palavras têm sexo. Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos de estilo”. ( Machado de Assis)
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
domingo, 7 de novembro de 2010
A terceira margem do rio :um texto plural.
Um texto é plural; não que tenha vários sentidos, mas o próprio plural do sentido é realizado por meio do texto. Poderíamos dizer que a partir de um texto podem surgir outros textos, dependendo do ponto de vista com que o analisamos e de determinadas palavras e/o expressões que ensejam nova interpretação. ( Bakhtin e Barthes)
É possível perceber que o narrador de A terceira margem do rio utiliza, em todo o texto, palavras como: pai, mãe, irmão, irmã, além dos pronomes a gente,nosso, meu, minha, eu, nós, meninos, dentre outras. Observe-se que a palavra pai é sempre utilizada posposta em relação ao pronome possessivo nosso. Isso possibilita ao leitor verificar que, assim como o narrador, os irmãos dele também perderam o pai, uma vez que são irmãos; porém é o protagonista quem mais sofre e não aceita a morte do pai, ficando assim na ‘terceira margem do rio’, no irreal, no transcendental *.
*transcendente
1. Sublime.
2. Superior que está acima das ideias e conhecimentos ordinários.
3. Que excede os limites ordinários.
4. Que se ocupa das questões mais elevadas.
Aparentemente, esse conto não tem coerência, pois, numa leitura superficial, corremos o risco de pensar que tal conto trata apenas de uma personagem que sente saudades do pai, o qual flutua numa canoa rio abaixo, rio acima, sem chegar a uma ou a outra margem do rio.É que o/a leitor/a não aceita facilmente a possibilidade de alguém não chegar a uma ou outra margem. Não faz sentido lógico que o rio possua uma terceira margem. No entanto, do ponto de vista metafórico, podemos, como leitores, compreender que a imagem do pai só era vista por um jovem na sua saudade e no seu desejo.
Quão difícil é para uma criança aceitar a morte do pai, principalmente se ao invés de dizer a verdade, a mãe a omite e cria outras estórias, dizendo que o pai da criança partiu para uma viagem, ou algo semelhante. Isso ocorre porque nem sempre as metáforas são compreendidas pelas crianças, não da mesma forma que os adultos. Talvez pelo fato de a criança compreender tudo de forma literal.
Se recorrermos ao dicionário de símbolos, veremos que “rio” representa a passagem da vida para a morte. Foi isso que fez o homem da canoa ao “ficar encantado”. Se o/a leitor/a observar bem, perceberá as semelhanças entre a canoa de A terceira margem do rio com um caixão para defuntos. Não sendo assim, para que uma canoa tão resistente e tão pequena,senão para servir de caixão? Percebe-se isso na seguinte passagem do conto: “mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa, água, que não pára, de longas beiras: e, eu rio abaixo, rio afora, rio a dentro – o rio.’’ (ROSA, 2001, p. 85).
Mesmo com todas essas evidências, o protagonista de A terceira margem do rio, não se convenceu de que seu pai de fato morrera; e insiste em procurá-lo à margem do rio no qual foi deixado, e, como se isso não bastasse, ele leva consigo roupas limpas e comidas para seu pai e não compreende a insistência deste em remar, em não voltar mais para casa. O que mais o intriga é o fato de seu pai nunca mais ter saído daquela canoa, nem chegar a qualquer margem, seja a dos vivos, seja a dos mortos.
Para o protagonista, seu pai teve uma atitude incompreensível, porém louvável, já que para “morar numa canoa” é necessária muita coragem. Podemos considerar que o menino,depois de adulto, manteve o pai vivo por meio de suas atitudes e ações.
Assim, depois das informações sobre o rio, de seu significado para os gregos,(*Caronte)pensamos ser possível falar da terceira margem do rio, que é o transcendental, o não real. É aí que está situado o protagonista, já que não aceita a realidade, a morte de seu pai, e, com isso, vive o irreal, o imaginário e sonha um dia poder abraçar seu pai e até trocar de lugar com ele.
Percebemos que o protagonista não aceita a perda/morte de seu pai, como podemos ver nos seguintes fragmentos: “sem alegria e nem cuidado, nosso pai decidiu um adeus para a gente [...] nosso pai entrou na canoa e desamarrou pelo remar (ROSA, 2001, p. 80). E mais adiante: “Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada [...] mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho.” “Isso, que fiz e refiz, sempre, tempos a fora”. Rosa (2001, p.81)
Esse conto é, segundo esta análise, uma metáfora da morte, em que a canoa representa o caixão e a travessia do rio, a passagem da vida para a morte.
E, finalmente, gostaríamos de citar mais um fragmento de Rosa (2001, p. 85), “Pai, o senhor está velho já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem e eu , agora mesmo, quando que seja , a ambas vontades , eu tomo o seu lugar, do senhor na canoa ! [...]”.
Pensamos ser esse o momento em que o protagonista aceita a morte de seu pai, pois, é aí que ele mais sofre, e só então percebe e aceita que o homem da canoa já não vive e que não há como trocar de lugar com alguém que já está morto, não há como inverter as margens do rio. Depois disso, o narrador-protagonista retorna para a primeira margem, para o lado de quem está vivo e consciente.
*Caronte era um barqueiro velho e esquálido, mas forte e vigoroso, que tinha como função atravessar as almas dos mortos para o outro lado do rio Aqueronte ( mitologia).
Texto adaptado da análise feita por
Raimunda Delfino dos SantosProfessora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Acre.
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
A Terceira Margem....(segunda parte)
Continuação do post de 24 /10...
O narrador, como que iluminado por uma Revelação, descobre a chave de sua angústia. Dirigindo-se ao rio, propõe ao pai que troque de lugar com ele, que então assumiria esse papel. As palavras do narrador traduzem o sentido latente da opção feita pelo pai: tem de haver alguém que ouse desafiar as regras estabelecidas, que proponha o novo, o diferente, o inesperado. Seu apelo é marcado pela urgência:
- “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
As palavras do filho, que pede para substituí-lo, são as únicas que fazem sentido para esse homem. Ao se oferecer para continuar a missão iniciada, o filho demonstra ter compreendido o significado da demanda paterna. Como no mito de Caronte, o barqueiro da fábula, a libertação só poderia ocorrer quando alguém, espontaneamente, com ele trocasse de lugar. O pai atende ao apelo, mas o narrador fraqueja:
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. (...) E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
A terceira margem do rio apresenta alguns elementos recorrentes na ficção rosiana. A imagem da travessia como alegoria do viver. Uma vez que a travessia traz consigo toda a simbologia da existência humana, a escolha do pai pela terceira margem sugere, simultaneamente, a defesa de um espaço de exceção, expresso pela margem, e a inserção do insólito, no entrelugar, no não-lugar indicado pela referência a uma terceira margem. Significativamente, a simbologia do três indica a fase final de um conflito, a sua resolução:
(...) O três equivale à rivalidade (o dois) superada; exprime um mistério de ultrapassagem, de síntese, de reunião, de união, de resolução.
O espaço escolhido pelo pai denota não mais o uno e o absoluto ou a bipolaridade, mas o momento terceiro, em que as contradições e opostos estão reunidos. Em termos filosóficos, isso equivale à obtenção da síntese, apogeu do processo dialético, momento de equilíbrio. O fato de o pai, em vez de chegar a algum lugar, preferir continuar na canoa, traduz a sua consciência do aspecto mutável da existência. Se a travessia representa a vida, a embarcação seria o próprio meio de conduzi-la, e é a singularidade com que o pai o faz o que o coloca como um ser de exceção.
O contraste entre o modus vivendi do pai e o senso comum é mostrado pela sua relação com o filho. Aquele que poderia continuar o projeto do pai fracassa por duas vezes em virtude de sua covardia. Na primeira, no momento da partida do pai, quando este faz menção de levá-lo consigo mas desiste quando percebe o seu medo e, já adulto, quando propõe a substituição mas foge ao combinado.
A dicotomia medo/coragem faz parte do universo rosiano, sendo apontada como uma das grandes linhas estruturais de Grande Sertão:Veredas. A coragem aparece como um dos atributos mais valiosos do ser humano, devendo o medo ser superado. Uma das provas de qualquer iniciação consiste no enfrentamento de situações de perigo ou desconhecidas. O maior contraste entre pai e filho n’A terceira margem do rio é justamente a ousadia de um e o medo do outro. Se o rio é a vida, é com determinação e ímpeto que o pai enfrenta os obstáculos, parecendo por vezes dotado de uma força sobre-humana:
(...) O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis do meio-do-ano. (...) Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, (...) aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo - de espanto de esbarro.
Contrastando com tamanha obstinação, vemos o narrador, duas vezes fracassado, sendo vítima de pequenos males, nada muito arrebatador. Ao se negar o desafio do pai, condena-se a uma existência medíocre e cotidiana, marcada por reumatismo e cansaço:
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio - rio - rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perenguice de reumatismo.
A vitalidade do pai parece derivar da vida livre que escolheu para si, e torna ainda mais flagrante a mesmice da vida comum, “apenas um demoramento”. Elucidativas são as palavras finais do narrador, que lamenta a própria condição:
(...) Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.
A constatação da própria mediocridade leva o narrador a questionar a sua humanidade. Sua falência enquanto indivíduo é permeada por negativas, pois é “o que não foi”, numa indicação de uma existência que não se justificou, e “o que vai ficar calado”, ao contrário do pai, cuja ausência disse tanto. Após confessar sua pequenez, o narrador pede que, na sua morte, seu corpo seja colocado numa canoa para vagar rio afora. Curiosamente, apesar de escolher o mesmo destino do pai, o filho mais uma vez se isenta de ser agente desse destino, pois pede para ser colocado, numa postura passiva. Teme ficar às margens, pois sabe que isso representa a exclusão social. Oscila entre a aventura proposta pelo pai e o porto seguro que lhe ensinaram a manter. Sua travessia é serena; sua rota, pré-traçada. A vida, travessia arriscada e fascinante, por vezes amedronta. “Viver é muito perigoso”. “Carece de ter coragem.”
quarta-feira, 3 de novembro de 2010
A Terceira Margem do Rio.-Caetano e Milton
Milton Nascimento / Caetano Veloso
Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, tristriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio viu, vi
O que niguém jamais olvida
Ouvi ouvi ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai
domingo, 24 de outubro de 2010
Pai e filho : a ousadia de um,o medo do outro
A TERCEIRA DA MARGEM DO RIO. ( primeira parte)
O conto narra a história de um homem que repentinamente manda construir uma canoa, passando a habitar a terceira margem do rio. É narrado pelo filho, que parece buscar na enunciação um sentido para o acontecido. As primeiras referências ao pai mostram ter sido ele sempre ligado à regra, aos padrões vigentes, à normalidade:
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros conhecidos nossos.
Mais do que a preocupação em caracterizar o pai, as palavras do narrador denunciam a tentativa de retratá-lo como um homem normal, em nada destoando dos outros pais do lugar. Depois de se isolar na canoa, o pai entra na categoria do diferente, e isso choca o senso comum:
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.
Ao dizer que “aquilo que não havia, acontecia”, o narrador evidencia a atitude vanguardista do pai, que ousou buscar a diferença. O termo invenção sugere ainda a postura criativa no ato de realizar algo nunca feito antes. Lenira Marques Covizzi, em seu estudo acerca do elemento insólito na obra de Guimarães Rosa, destaca alguns aspectos recorrentes nesses contos marcados pela estranheza:
Os personagens das Primeiras Estórias são sempre seres de exceção, por diferentes motivos. Seja por especial estágio etário de evolução (...), atitudes pouco comuns, atitudes surpreendentes, transgressão às regras sociais, atuação em acontecimentos não habituais, anormalidade físico-psíquica (...)
Entretanto, segundo a autora, os personagens que manifestam essa exceção são dotados de coerência, ainda que ela não seja percebida por aqueles que os rodeiam: Há sempre uma determinação, uma vontade, uma certeza, uma calma da parte do personagem, que parece conhecer, dominar a situação, saber o que está fazendo, em oposição à perspectiva de dúvida, de espanto, de perplexidade, que é do narrador e do leitor ignorantes, não viventes da situação.
E, enquanto os outros tentam justificar de modo racional o isolamento do personagem, este mantém-se cada vez mais firme em sua escolha:
(...) Nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente.
Observe-se que o narrador estabelece uma aproximação entre os termos solto e solitariamente, associando solidão e liberdade. Dessa forma, começa-se a vislumbrar o possível motivo que teria levado o pai a buscar o isolamento.
Após o choque causado pela partida do pai, aos poucos a vida parece voltar ao normal, e nem mesmo auxílio espiritual ou força policial conseguem demovê-lo de seu exílio. Sua reclusão aproxima-o do arquétipo do eremita, representação simbólica do indivíduo que se afasta voluntariamente do convívio dos homens. Sua opção de vida consiste no abolir das regras e modelos que pautam a vida em sociedade, o que se verifica no conto: “por todas as semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta do se-ir do viver”(Cf. Primeiras Estórias, p.34).
Tudo segue seu rumo, com a passagem do tempo indiciada pela sucessão de casamentos, nascimentos e batizados. O pai, tendo renunciado aos hábitos culturais e de higiene, torna-se cada vez mais natural e primitivo, sofrendo um processo de animalização, como se depreende das palavras do filho:
(...)Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virava cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de um bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Com o passar do tempo todos vão partindo, até que o narrador se vê sozinho. Talvez pelo fato de ter sido o único a quem o pai quisera levar consigo, ele sente-se preso à angústia de tentar compreender o que houve. A partir da atitude radical tomada pelo pai, a família começa a questionar as fronteiras da sanidade, chegando à mesma conclusão expressa por Foucault em sua História da Loucura, segundo a qual todo ser humano possui o seu quinhão de insensatez. Diz o narrador:
(...) Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.
Tatiana Alves Soares (UFRJ)
( CONTINUA...)
quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Qual é a terceira margem do rio?
Analisando a obra;
Narrado em primeira pessoa e é o mais famoso e o mais aberto conto do autor.
Tempo
O tempo cronológico é de um longo período, toda a vida do narrador. Mas a intensidade com que as impressões e o amadurecimento do narrador são mostrados enfocam o tempo psicológico.
Espaço
O espaço é delimitado pela presença concreta do rio, caracterizando a paisagem rural Desse espaço emanam magia e transcendentalismo aos olhos do leitor, no ir e vir do rio e da vida.
Personagens
Os personagens são: filho (narrador-personagem),
pai (“virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia”),
mãe, irmã, irmão, tio (irmão da mãe), mestre, Padre, dois soldados e jornalistas.
Esses personagens, sem nomes, acabam se caracterizando como tipos sociais, por suas funções na história. A observação desse aspecto já mostra, no pai, a tendência ao isolamento. Sempre fora a mãe a responsável pelo comando prático da família. O pai, sempre quieto. O filho e narrador não foi aceito na infância para companheiro do pai no seu desafio. Na maturidade, quando tem a oportunidade, acha não estar preparado para ir rumo ao desconhecido, ao "inominável".
Recursos de estilo
Toda essa estranha história vem vazada no já comentado estilo típico de Guimarães Rosa. A oralidade é reproduzida na fala do narrador: "Do que eu mesmo em alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem ralhava no diário com a gente."
As frases, curtas e coordenadas, independentes, garantem um ritmo lento e pausado à leitura: "Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá concordando".
A repetição também é um recurso expressivo comum ao autor, como no caso: e o rio-rio-rio, o rio sempre fazendo perpétuo.
Neologismos também estão presentes ("diluso", talvez variante de diluto, diluído; ou "bubuiasse") ao lado de termos regionais como "trouxa", no sentido de comida e roupas, típico no falar dos boiadeiros; além de outras palavras pouco comuns: encalcou, entestou etc.
As figuras de linguagem reforçam o lado poético do conto como exemplificam a gradação "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!", a antítese "perto e longe de sua família dele", além do próprio caráter metafórico do rio.
Sem dúvida, todos esses recursos geram dificuldade ao leitor que desafia a obra rosiana. Mas, uma vez enfrentados, eles permitem o acesso ao mundo do "encantatório", ao mundo do desconhecido, da terceira margem, que só poderia ser recriado por uma linguagem também recriada e nova, capaz de refletir todo o deslumbramento desse universo.
A temática deste conto é a loucura.
Desde o título, o leitor já depara com o insólito da obra rosiana: o que vem a ser a terceira margem do rio? A expressão provoca o entendimento a fim de despertá-lo para o mundo do inconsciente, do abstrato. A terceira margem é aquilo que não se vê, que não se toca, que não se conhece.
O pai, ao ir à procura da terceira margem do rio, busca o desconhecido dentro de si mesmo; o isolamento é a única maneira encontrada para procurar entender os mistérios da alma, o incompreensível da vida. A estranha história do homem que abandona sua família para viver em uma canoa e nunca mais sair dela é o argumento exemplar usado pelo autor para discorrer sobre o medo do desconhecido.
O rio sempre teve destaque na imaginação do autor:
[…] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade.
Guimarães Rosa
Um aspecto interessante a ser notado é que o narrador, quando criança, queria embarcar com o pai. Este o impediu. Adulto, intui o porquê da busca do pai e, chegando-se à margem do rio, diz que quer substituí-lo. É o único momento em que o velho se manifesta, indo em direção à margem. No entanto, o narrador fica com medo da imagem do pai, que parecia vir do outro mundo. Foge. Por isso, torna-se a única personagem fracassada, pois não foi capaz de transcender, de realizar seu salto.
Narrado em primeira pessoa e é o mais famoso e o mais aberto conto do autor.
Tempo
O tempo cronológico é de um longo período, toda a vida do narrador. Mas a intensidade com que as impressões e o amadurecimento do narrador são mostrados enfocam o tempo psicológico.
Espaço
O espaço é delimitado pela presença concreta do rio, caracterizando a paisagem rural Desse espaço emanam magia e transcendentalismo aos olhos do leitor, no ir e vir do rio e da vida.
Personagens
Os personagens são: filho (narrador-personagem),
pai (“virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia”),
mãe, irmã, irmão, tio (irmão da mãe), mestre, Padre, dois soldados e jornalistas.
Esses personagens, sem nomes, acabam se caracterizando como tipos sociais, por suas funções na história. A observação desse aspecto já mostra, no pai, a tendência ao isolamento. Sempre fora a mãe a responsável pelo comando prático da família. O pai, sempre quieto. O filho e narrador não foi aceito na infância para companheiro do pai no seu desafio. Na maturidade, quando tem a oportunidade, acha não estar preparado para ir rumo ao desconhecido, ao "inominável".
Recursos de estilo
Toda essa estranha história vem vazada no já comentado estilo típico de Guimarães Rosa. A oralidade é reproduzida na fala do narrador: "Do que eu mesmo em alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem ralhava no diário com a gente."
As frases, curtas e coordenadas, independentes, garantem um ritmo lento e pausado à leitura: "Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá concordando".
A repetição também é um recurso expressivo comum ao autor, como no caso: e o rio-rio-rio, o rio sempre fazendo perpétuo.
Neologismos também estão presentes ("diluso", talvez variante de diluto, diluído; ou "bubuiasse") ao lado de termos regionais como "trouxa", no sentido de comida e roupas, típico no falar dos boiadeiros; além de outras palavras pouco comuns: encalcou, entestou etc.
As figuras de linguagem reforçam o lado poético do conto como exemplificam a gradação "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!", a antítese "perto e longe de sua família dele", além do próprio caráter metafórico do rio.
Sem dúvida, todos esses recursos geram dificuldade ao leitor que desafia a obra rosiana. Mas, uma vez enfrentados, eles permitem o acesso ao mundo do "encantatório", ao mundo do desconhecido, da terceira margem, que só poderia ser recriado por uma linguagem também recriada e nova, capaz de refletir todo o deslumbramento desse universo.
A temática deste conto é a loucura.
Desde o título, o leitor já depara com o insólito da obra rosiana: o que vem a ser a terceira margem do rio? A expressão provoca o entendimento a fim de despertá-lo para o mundo do inconsciente, do abstrato. A terceira margem é aquilo que não se vê, que não se toca, que não se conhece.
O pai, ao ir à procura da terceira margem do rio, busca o desconhecido dentro de si mesmo; o isolamento é a única maneira encontrada para procurar entender os mistérios da alma, o incompreensível da vida. A estranha história do homem que abandona sua família para viver em uma canoa e nunca mais sair dela é o argumento exemplar usado pelo autor para discorrer sobre o medo do desconhecido.
O rio sempre teve destaque na imaginação do autor:
[…] amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como os sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios: a eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar a eternidade.
Guimarães Rosa
Um aspecto interessante a ser notado é que o narrador, quando criança, queria embarcar com o pai. Este o impediu. Adulto, intui o porquê da busca do pai e, chegando-se à margem do rio, diz que quer substituí-lo. É o único momento em que o velho se manifesta, indo em direção à margem. No entanto, o narrador fica com medo da imagem do pai, que parecia vir do outro mundo. Foge. Por isso, torna-se a única personagem fracassada, pois não foi capaz de transcender, de realizar seu salto.
domingo, 17 de outubro de 2010
"Ninguém é doido. Ou, então, todos."
TEXTO INTEGRAL - extraído de http://www.releituras.com/guimarosa_margem.asp
A Terceira Margem do Rio
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
Do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendamos
A Terceira Margem do Rio
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
Do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendamos
sábado, 9 de outubro de 2010
domingo, 3 de outubro de 2010
Como eu farei minha prova, amanhã?
...Fácil...com intuição, leitura reflexiva,raciocínio.
Enfim, Guimarães Rosa tem sensibilidade, jogo lingustico, alma, mexe com nossos sentidos.
Deixe-se encantar.
Beijos .
E caprichem. A nota parece importante, mas , mais importante é como vocês apreendem o mundo que os cerca.
Enfim, Guimarães Rosa tem sensibilidade, jogo lingustico, alma, mexe com nossos sentidos.
Deixe-se encantar.
Beijos .
E caprichem. A nota parece importante, mas , mais importante é como vocês apreendem o mundo que os cerca.
domingo, 26 de setembro de 2010
“Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída"
O conto “Famigerado”, realçando o poder da palavra e a importância do jogo lingüístico na construção de identidades, identifica traços culturais no encontro ou confronto de uns personagens com outros.
As diferentes identidades culturais constroem-se num espaço lingüístico literário, arena dialética em que se instalam dúvidas, questionamentos e medos, em que se instalam, enfim, identidades diversas.
Sabendo que o medo é uma das quatro emoções básicas do ser humano e que a coragem pode advir dele, vemos na personagem narradora atitudes temerosas e comportamentos corajosos advindos, certamente, de seu medo.
Há também precauções do narrador exemplarmente reveladoras de um clima de insegurança e medo: “... a frente da minha casa reentrava, metros da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo.”; “cheguei à janela” . Esses trechos demonstram ser o narrador permanentemente dotado de medo que, certamente, tem a ver com experiências por ele vividas ou conhecidas. Há que se considerar que a emoção do medo, mesmo sendo básica, não é inerente ao homem. Este a possui culturalmente, após conhecimentos e, ou, experiências que a desencadeiam. Tanto é cultural que ele, o narrador, desenvolveu meios próprios e adequados para lidar com seu medo.
Não só o narrador, mas os “tristes três” ( as testemunhas)mantêm o tempo todo um diálogo com o medo, conforme atestam os trechos: “e embolados, de banda, ...”; “... constrangidoscoagidos, sim.”; “... o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los”; “... intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam”; “... enquanto barrava-lhes qualquer fuga”; “... intugidos até então,mumumudos.”; “Estes aí são de nada não.”; “Satisfez aqueles três: - vocês podem ir compadres. (...) e eles prestes se partiram”.
Daí, deduzimos que a característica emocional,fundamental dos “tristes três”, é também o medo. E, se vemos Damázio como o valente, corajoso, não podemos afirmar que também ele não guarda o seu medo; isto porque há uma relação confusa e muito difundida culturalmente “entre medo e covardia, coragem e temeridade” .
Há em Damázio dois sentimentos: um positivo e outro negativo, mas não seria coerente, do ponto de vista cultural, Damázio dar ares de medo.
Mas, o que, senão o medo, ou este mais atenuado - a insegurança - teria mobilizado Damázio? Citando Delpierre, Jean Delumeau esclarece que “A palavra ‘medo’ está carregada de tanta vergonha que a escondemos. Enterramos no mais profundo de nós, o medo que nos domina as entranhas” .
Daí podemos postular que medo e coragem se encontram sempre - é nos momentos de medo, de grandes pavores que a coragem se aflora e realiza grandes atos positivos ou negativos. O narrador movido
pelo medo, consegue “gambelar” Damázio, e o faz de uma forma não muito honesta mas, sem dúvida, de uma forma competente.
Assim eles reafirmam sua identidade cultural: Damázio retorna, convencido de que não fora enganado, sabe que é um valente; o narrador, por sua vez, sabe lidar com as palavras e com elas ele
“evita o de evitar”, reforçando também sua identidade.
Embora o medo seja um elemento cultural pertinente a todos os personagens, todos eles também se identificam pela valentia. No final, o narrador é exaltado por Damázio como um macho um
valente ao dizer: “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída”.
As diferentes identidades culturais constroem-se num espaço lingüístico literário, arena dialética em que se instalam dúvidas, questionamentos e medos, em que se instalam, enfim, identidades diversas.
Sabendo que o medo é uma das quatro emoções básicas do ser humano e que a coragem pode advir dele, vemos na personagem narradora atitudes temerosas e comportamentos corajosos advindos, certamente, de seu medo.
Há também precauções do narrador exemplarmente reveladoras de um clima de insegurança e medo: “... a frente da minha casa reentrava, metros da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo.”; “cheguei à janela” . Esses trechos demonstram ser o narrador permanentemente dotado de medo que, certamente, tem a ver com experiências por ele vividas ou conhecidas. Há que se considerar que a emoção do medo, mesmo sendo básica, não é inerente ao homem. Este a possui culturalmente, após conhecimentos e, ou, experiências que a desencadeiam. Tanto é cultural que ele, o narrador, desenvolveu meios próprios e adequados para lidar com seu medo.
Não só o narrador, mas os “tristes três” ( as testemunhas)mantêm o tempo todo um diálogo com o medo, conforme atestam os trechos: “e embolados, de banda, ...”; “... constrangidoscoagidos, sim.”; “... o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los”; “... intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam”; “... enquanto barrava-lhes qualquer fuga”; “... intugidos até então,mumumudos.”; “Estes aí são de nada não.”; “Satisfez aqueles três: - vocês podem ir compadres. (...) e eles prestes se partiram”.
Daí, deduzimos que a característica emocional,fundamental dos “tristes três”, é também o medo. E, se vemos Damázio como o valente, corajoso, não podemos afirmar que também ele não guarda o seu medo; isto porque há uma relação confusa e muito difundida culturalmente “entre medo e covardia, coragem e temeridade” .
Há em Damázio dois sentimentos: um positivo e outro negativo, mas não seria coerente, do ponto de vista cultural, Damázio dar ares de medo.
Mas, o que, senão o medo, ou este mais atenuado - a insegurança - teria mobilizado Damázio? Citando Delpierre, Jean Delumeau esclarece que “A palavra ‘medo’ está carregada de tanta vergonha que a escondemos. Enterramos no mais profundo de nós, o medo que nos domina as entranhas” .
Daí podemos postular que medo e coragem se encontram sempre - é nos momentos de medo, de grandes pavores que a coragem se aflora e realiza grandes atos positivos ou negativos. O narrador movido
pelo medo, consegue “gambelar” Damázio, e o faz de uma forma não muito honesta mas, sem dúvida, de uma forma competente.
Assim eles reafirmam sua identidade cultural: Damázio retorna, convencido de que não fora enganado, sabe que é um valente; o narrador, por sua vez, sabe lidar com as palavras e com elas ele
“evita o de evitar”, reforçando também sua identidade.
Embora o medo seja um elemento cultural pertinente a todos os personagens, todos eles também se identificam pela valentia. No final, o narrador é exaltado por Damázio como um macho um
valente ao dizer: “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída”.
quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Famigerado:os embates da ignorância contra o conhecimento
Essa Narrativa empenha-se em traduzir o significado de uma palavra – “famigerado” - onde todo o seu enredo é centrado em torno desse termo, o que leva a inferir que o tema do texto é a própria linguagem, estabelecendo-se, assim, como uma narrativa metalinguística. A narrativa acontece na primeira pessoa, constitui-se num episódio cômico, quando a lemos como se fosse uma adivinha às avessas, invertendo as posições do inquiridor e do questionado.
Desta forma, seu enredo nos envolve revelando uma riqueza de procedimentos estilísticos, trazendo como temática de fundo a modernização do sertão nos anos 60, o embate entre o letrado e o jagunço revela tensões e ambiguidades, abordadas pela estilística e pela psicanálise.
O personagem letrado é o próprio autor, que descreve o seu confronto em palavras com o perigoso jagunço, conhecido e temido na região, que ao chegar aflito em sua residência, deseja saber o significado da palavra “famigerado”.
É interessante notar a constante preocupação de cada um dos personagens em descobrir o que existe por detrás das palavras, o jagunço desejando ter posse do conhecimento, uma vez que suas ações dependiam disso e o narrador querendo saber o motivo da curiosidade do jagunço em querer desvendar o significado de tal palavra, ao mesmo tempo, permeado pelo medo de que tenham feito uma possível intriga contra ele. Para isso, de forma temerosa o homem culto, tinha que procurar ler nas entrelinhas das palavras do jagunço para entender suas mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios, para dar-lhe uma reposta “agradável”.
Então, o autor personagem, receoso de revelar o verdadeiro sentido da palavra, mente, pois teme a violência do jagunço contra o “moço do Governo” que assim o havia chamado. Ele explica que “famigerado” quer dizer “célebre”, “notório”, “notável”. Damázio, o jagunço, depois de tranqüilizado com a resposta do médico, agradece e vai embora, antes, porém, considera que: “Não há como as grandezas machas de uma pessoa instruída”.
Nesse conto podemos opor o poder da força ao poder da instrução, (a força do jagunço e o conhecimento do médico), o do letrado ao do não-letrado, representando ainda os embates da ignorância contra conhecimento, da força física contra força intelectual (na violência e nas armas de Damázio e no poder das palavras).
Ademais, verificamos que ocorre um processo metonímico de uma situação mais ampla, o embate entre sertão e cidade, que ainda se configura em outros embates como o do governo e da jagunçagem, o do moço do Governo e o do jagunço Damázio. Nesse sentido, percebemos que o dualismo é a chave de interpretação da estória, que se baseia em dois princípios opostos e coexistentes. São duas forças opostas que coexistem sem se negar, como os outros dualismos do conto.
domingo, 19 de setembro de 2010
Mais Guimarães Rosa : por quê? Porque a gente merece o melhor!
Famigerado
Guimarães Rosa
Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
— Famigerado?
— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."
Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...
— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...
— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.
Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 13, cuja compra recomendamos.
http://www.releituras.com/guimarosa_menu.asp texto integral
sábado, 18 de setembro de 2010
"Para o pobre, os lugares são mais longe."
Sorôco, sua mãe, sua filha
Conto narrado em terceira pessoa, mas com a participação ambígua do narrador como personagem. Isto se dá pelo fato do narrador ser um observador dos fatos, mas também fazer parte do povo: “A gente se esfriou (…)” “A gente estava levando agora o Sorôco (…)” Ou seja, “a gente “, no conto, pode ser a gente, o povo da estação, como também o marcador oral “a gente” enquanto nós.
O conto tem uma temática triste, trabalha com o sentido circular de passar a angústia do personagem Sorôco com sua solidão e desespero ao ter que deixar ir para longe as únicas pessoas que tem no mundo, ficando mais solitário ainda. Tudo gira em torno da separação, da perda, da ausência e da distância.
A grande temática do conto é a solidariedade. Há a compaixão do povo para com Sorôco e sua dor. O povo se solidariza com Sorôco. A irracionalidade entoada na cantiga da mãe e da filha loucas realiza o elo de ligação entre as dores de todos os homens. É uma cantiga compreendida só por aqueles que possuem sentimento, a razão de ser do humano. Esta cantiga metaforiza a união entre os homens por meio da solidariedade.
É possível imaginar o sofrimento de Soroco, o vazio dolorido sentido e a profunda solidão na alma. A solidão só não é absoluta, porque existe a solidariedade do povo acalentando seu coração.
Pode-se observar também as sugestões sonoras oferecidas pelo nome do personagem: Sorôco – só louco; Sorôco – socorro, como compreensão do forte sentido do contexto do texto. Por outro lado, é interessante perceber a gradação do título, sugerindo a união da família como vagões que se engatam no trem da existência e se desengatam no destino. Cada vagão carrega sua própria solidão e dor, mas forma o trem da solidão e da dor coletivas, na metáfora de uma cantiga.
Enredo
O conto inicia com a descrição de um vagão diferente, gradeado, que seria levado pelo “trem do sertão”. A população sabia que ele levaria “duas mulheres, para longe, para sempre”: a mãe e a filha de Sorôco. “A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo.” Homem simples e rude, vivia com sua mãe e sua filha. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
Mãe e filha eram loucas. Sorôco tentou ficar com as duas ao seu lado, mas não foi possível. Tomou a decisão mais difícil de sua existência: interná-las. O governo mandaria o trem para levá-las para Barbacena, longe. "Para o pobre, os lugares são mais longe." Sorôco deveria encaminhá-las à estação, pois "o trem do sertão passava às 12h45m."
Sorôco seguiu para a estação acompanhando as duas, uma de cada lado, “parecia entrada em igreja, num casório.” O povo esperava, protegendo-se do sol. "As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam (...) Sempre chegava mais povo - o movimento." Alguém avisa que Sorôco aponta da Rua de Baixo, onde mora. Ele vestia a sua melhor roupa para a despedida, que a população acompanhava com pesar – “Todos diziam a ele seus respeitos, de dó.” Diziam palavras que tentavam consolá-lo e ele muito humilde respondia: - "Deus vos pague essa despesa..."
Todos compreendiam a atitude de Sorôco, pois não havia outro jeito.Porém todos pensavam que a partida delas seria bom para ele, visto não haver cura para a doença e também pelo fato de elas terem piorado nos últimos 2 anos, a ponto de Sorôco pedir ajuda médica para elas.
Em frente ao trem, a filha de Sorôco começa a cantar uma cantiga que ninguém entende. A mãe de Sorôco começa a cantar também a cantiga entoada pela moça, antes de serem alojadas dentro do trem. Principia o embarque das duas. E o canto ecoa longe. Sorôco não espera o trem desaparecer de vez, nem olha, fica de chapéu na mão calado. "De repente, todos gostavam demais de Sorôco."
O trem partiu e “Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava.” Todos os presentes ficaram condoídos com o sofrimento do homem. Entretanto, Sorôco pára e “num rompido – ele começou a cantar. Alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.” E eis que “todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com vozes tão altas! (...) A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.”
Ocorre então uma atitude coletiva aparentemente irracional: “E foi sem
combinação, nem ninguém entendia o que fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco,
principiaram também a acompanhar esse canto sem razão” . Nessa
procissão coletiva, a “loucura” (remanescente no canto) readquire algo do caráter
sagrado que ela possuía em tempos arcaicos, anteriores à soberania social da razão.
O rito social da separação espacial dos “loucos” é, assim, seguido de um
impulso de união psíquica dos “sãos”, que vão em socorro de Sorôco. A palavra
“socorro”, quase anagrama de Sorôco, já havia aparecido no texto: “Tiveram de olhar
em socorro dele”. O socorro, que fora inicialmente tentado pela via racional, só vem
de fato nesse fim do conto: “A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga”. O“lugar nenhum” revela-se como lugar comum. O lugar físico dos “loucos” e dos
“sãos” pode ser determinado, mas o canto “louco” os irmana num “lugar nenhum”
que, como sempre, em Guimarães Rosa, parece designar o inconsciente, de onde, felizmente,tanto podem vir os impulsos agressivos, quanto os impulsos amorosos.
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
O mundo mágico de Guimarães Rosa : Sorôco
Personagens como as crianças,os velhos e os loucos são seres intuitivos, portadores de uma vocação mágica. A eles é dada a liberdade de criar seus mundos, livres de racionalismo, podendo perceber e atingir revelações profundas. Para o autor, nosso mundo é apenas uma passagem para um mundo espiritualmente complexo
A partir de fatos banais, o autor discute temas que são universais, questões metafísicas que desde sempre angustiam o ser humano.Ocorrem momentos epifânicos, isto é, que revelam e iluminam toda a existência da personagem. Desses pequenos “causos”, como diriam os sertanejos do norte de Minas Gerais, o autor extrai lições de vida, mesmo quando usa uma carga de humor.
Há uma clara noção, em alguns contos, de que existiria uma força natural que, por meios os mais variados possíveis, faz com que o destino das pessoas se cumpra.
SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA
Neste conto verifica-se duas características típicas de Guimarães Rosa. A primeira é a ortografia própria, que chega a se desviar muitas vezes do padrão gramatical. Nada justifica o acento na palavra “Sorôco”. Além disso, como em muitas personagens, o nome do protagonista carrega um significado oculto. A sonoridade da palavra lembra “ser oco”, ou seja, alguém que busca o desapego.
É a condição para realizar o salto, a transcendência comum nos contos de Primeiras Estórias.
Sorôco é comparado a Jó, personagem da Bíblia, por causa de seu sofrimento. Tem uma mãe e uma filha loucas. Passado e futuro. Ele, no meio. Ele, a terceira margem. A eternidade. E as proporções gigantescas dele lembram as personagens grotescas que são castigadas, eliminadas em outros contos. O padecimento a que foi submetido ao cuidar das duas, no entanto, redimiu-o.
O conto inicia-se com o protagonista levando suas parentas para a estação de trem, em que pegarão um trem que as levará a um hospício em Barbacena. A cidade inteira está na estação, como numa espécie de apoio num momento difícil. É o que os segura de rirem das duas figuras tão despropositadas.
Quem é Jó?
O Jó da Bíblia é aquele personagem rico, que tinha uma importante posição social. Satanás tirou dele toda a riqueza, os filhos e, finalmente, a sua saúde, com o consenso de Deus. Aqueles que conviviam com ele diziam que tudo aquilo era uma punição de Deus por eventuais pecados. Também a sua esposa condividia essa opinião e sobretudo os seus 3 amigos, Elifaz, Bildad e Zófar, que porém estão a seu lado depois que é expulso da cidade, não por solidariedade, mas para explicar a ele as razões da sua desgraça. Apesar disso, Jó não abandona a Deus. Ele, por isso, é recompensado, e Deus lhe dá novamente 10 filhos e dobra a sua riqueza precedente.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
O diferente, o outro, a loucura, mas, sobretudo, a solidariedade.
TEXTO INTEGRAL -extraído de http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php
Sorôco, sua mãe, sua filha
AQUELE carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.
As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.
O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. – "Vai ver se botaram água fresca no carro..." – ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: – "Eles vêm!... " Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.
Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papeis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.
Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: – "Deus vos pague essa despesa... "
O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.
De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – "Ela não faz nada, seo Agente..." – a voz de Sorôco estava muito branda: – "Ela não acode, quando a gente chama..." A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.
Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorcôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.
Sorôco.
Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre. Sorôco nâo esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: – "O mundo esta dessa forma... " Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.
Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.
A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.
OBS: Denso e sofrido, lindo, triste,humano...alguns adjetivos que cabem a esta estória de solidão e companhia.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
Um presente para a alma e para a inteligência: GUIMARÃES ROSA
"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios,pois são profundos como a alma de um homem.Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens."
Era médico, diplomata, poliglota, conforme um dia disse a uma prima, estudante, que fora entrevistá-lo:
“Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano,esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe,do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que
estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional.
Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”
domingo, 22 de agosto de 2010
Boa Prova, queridos...e queridas!
quinta-feira, 19 de agosto de 2010
A Ilha Desconhecida : um desafio.
No conto da Ilha Desconhecida há momentos de profundidade que aparentam serem superficiais. Os personagens são muito mais um retrato de suas funções sociais do que de suas características físicas. Assim, o personagem principal, o desbravador de ilhas, é caracterizado apenas como o homem que queria um barco, o homem que tinha um barco ou o homem do leme, e a sua companheira como a mulher da limpeza.
Porém, no decorrer da história, a aparente simplicidade dos personagens se contrasta com a profundidade de seus pensamentos. Talvez a iniciativa de recorrer às funções dos personagens,marcando sua posição hierárquica, transpareça no enredo como uma articulação necessária para retratar a sociedade resultante de um sistema marcado
pelas desigualdades.
Logo no início do conto aparece a questão da hierarquia social, que vai do rei (topo do poder) que estava sempre ocupado na porta das obséquias porque estes eram bem vindos, enquanto as petições não eram resolvidas,passa por vários outros subordinados até chegar à mulher da limpeza, (essa burocracia nos serviços mostra um governo distante de seu maior objetivo:promover o bem-estar do povo), e no momento em que o homem “manda” chamar o rei, e este atende ( por curiosidade), começa uma desordem nesta hierarquia.
Quando o rei desconcertado, por causa do “atrevimento”do homem, senta-se na cadeira de palhinha usada pela mulher da limpeza,que era muito mais baixa e desconfortável que o trono, passa a haver uma aproximação da realeza com o povo, representado aí pelo homem do barco.
O homem estava diante de uma ordem social pronta para dizer não, mas ele apresentou bons argumentos e ,no momento em que o rei disse que não daria o barco, ele -com firmeza e convicção -falou: “Darás”. O rei percebeu que aquele homem era como um instrumento que poderia causar transformações sociais, ainda que primeiro em plano pessoal, mas, posteriormente, com uma inclinação perceptível ao coletivo, por isso, diante da pressão popular e para evitar maiores aborrecimentos, consentiu em atendê-lo, pois assim continuava com a coroa na cabeça, sendo O Rei.
O poder de convencimento do homem em relação à autoridade real foi tão contundente, quanto sua certeza da existência da ilha. Percebemos que para iniciar o processo de descoberta e transformação é necessário que se derrubem algumas barreiras, até mesmo aquelas que parecem estar muito acima de nós.
Após a quebra do obstáculo da posição social, vem a parte mais difícil de sua jornada: a busca da ilha desconhecida. Saramago, através desse conto, faz uma metáfora da necessidade de fazermos a nossa própria viagem em direção a nós mesmos, e traz o passado até nós, lembrando o período das grandes navegações para representar o sentido das descobertas humanas, a busca de si mesmo, de seu mundo interior, ir onde nenhum outro jamais estivera e descobrir verdades profundas escondidas na alma. E seja lá onde se consegue ir, mesmo se a viagem for bruscamente interrompida pela morte, a algum lugar se chega.
“Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me viesse a acontecer,
deverias escrever nos anais do porto que o ponto a que cheguei foi
esse, Queres dizer que chegar sempre se chega,...” (SARAMAGO, 1998,
p.27).
O homem do barco procurou ajuda de marinheiros, mas ninguém quis ajudá-lo, porque sair de suas vidas tranquilas e meter-se à procura do “impossível”,enfrentar o mar tenebroso, era tarefa difícil. Seriam necessárias muita coragem e obstinação para ser aventureiro a desbravar novas terras. Mas ele conta com a ajuda de uma mulher (a mulher da limpeza), que resolve sair do palácio pela porta das decisões e passa a acompanhá-lo nessa busca.
“Pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado à hora de mudar de ofício, que lavar e limpar barcos é que era sua vocação verdadeira,no mar, ao menos a água nunca lhe faltaria” (SARAMAGO, 1998,p.24).
Já sabia ela que precisamos estar longe de nós mesmos para podermos enxergar melhor nossa natureza, e que só assim venceremos os obstáculos do caminho , por isso troca sua rotina enfadonha por uma viagem poética em busca de seus sonhos A obsessão do homem contagiara de forma simplista a sensibilidade feminina.
Também é apresentado no texto um processo de recomeço e de renovação,no qual aparece o sonho não como um qualquer, mas mostrando-nos que é preciso navegar para além do real, resistindo às adversidades para que nos tornemos aptos à concretização do sonho e possamos ancorar em porto seguro.
Todos estes fatores que vão das adversidades até o “navegar para o
além do real” permite a aproximação entre o “homem do barco” e a “mulher da
limpeza”, “Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os
corpos” (SARAMAGO, 1998, p.62), pois do sonho surge o amor, e do amor,
força para enfrentar os pesadelos.
A partir daí os dois passaram não somente a fazerem descobertas exteriores, mas a descoberta de si mesmo.Sabiam eles, agora, que um completaria o outro, que a compreensão das verdades mais profundas, escondidas na alma (como uma ilha) seriam possíveis.
Nomearam o barco que o rei havia lhes dado : “Ilha Desconhecida”, e esta lançou-se enfim ao mar, a procura de si mesma, mostrando que ainda havia muitas descobertas a serem feitas.
OBS:
Saramago é uma "viagem" maravilhosa pela literatura, pela língua portuguesa e um desafio para qualquer leitor que queira aprender e saber mais. OUSE!
quarta-feira, 11 de agosto de 2010
Todo ( ou nenhum )homem é uma ilha (?) ...para reflexão.
John Donne (1572-1631):
“Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do género humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.
Saramago :
O filósofo do rei, quando não tinha que fazer, ia sentar-se ao pé de mim, a ver-me passajar as peúgas dos pajens, e às vezes dava-lhe para filosofar, dizia que todo o homem é uma ilha, eu, como aquilo não era comigo, visto que sou mulher, não lhe dava importância, tu que achas, Que é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, Se não saímos de nós próprios, queres tu dizer, Não é a mesma coisa.
O homem que queria um barco, bem como a mulher da limpeza que decide o seguir,
são o elemento diferenciador na narrativa: aqueles que assumem o papel de descontentamento com a realidade presente . São eles, que não possuem o poder e os barcos de domínio do rei, nem o conhecimento e a experiência dos marinheiros, que decidem buscar a ilha desconhecida, não conformados apenas com as que já existiam.
Isso, porque tinham o essencial: a vontade, o despreendimento, o desejo de mudança. Esses dois personagens demonstraram que o passado pode ser lembrado através de diferentes concepções, duas as quais ficam claramente expostas no conto em questão.
Uma, representada através do rei e dos marinheiros, concretizada na estabilidade daquilo que já foi conquistado: “não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos seus barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura de um impossível.” (SARAMAGO,1998, p.39).
A outra, a qual seguiram, fundamentada não a partir do que outros disseram ser apropriado e mais sensato, mas alicerçada pessoalmente por aquilo em que se acredita, a realidade como resultado da equação entre o que se quer, o que se é e a maneira em que, portanto, acaba-se agindo.
sábado, 7 de agosto de 2010
O autor explica ( muito bem) a obra.
A ilha desconhecida somos nós próprios e, nesse conto, quando se pinta dos lados que o nome da caravela é Ilha Desconhecida, as últimas palavras são: "Com a maré do meio-dia, a caravela partiu à procura de si mesma." E, no fundo, é isso. Nós andamos à procura de nós próprios e essa busca pode tomar vários caminhos.
(SARAMAGO. Acesso em 19/11/06)
domingo, 1 de agosto de 2010
Saramago : porque vale a pena.
Se só nos detivermos a pensar nas pequenas coisas nunca chegaremos a compreender as grandes
Em 18 de Junho de 2010, morreu na Ilha de Lanzarote, o escritor português José Saramago. Tido como um escritor polêmico, Saramago foi um dos mais importantes homens de letras da língua portuguesa do século XX e, talvez, de toda a história.
Nas linhas a seguir, você poderá conferir alguns detalhes sobre a vida e conhecer algumas citações de Saramago.
José Saramago nasceu em Azinhaga em 16 de novembro de 1922 e faleceu na Ilha de Lanzarote (que faz parte das Ilhas Canárias) no dia 18 de junho de 2010.
Além de escritor, José Saramago era jornalista, dramaturgo e poeta.
Venceu o Prêmio Camões (o mais importante da língua portugues e ganhou o prêmio Nobel de literatura.
«Se eu tivesse morrido antes de te conhecer, Pilar, teria morrido sentindo-me muito mais velho. Aos 63 anos, a minha segunda vida começou. Não posso queixar-me. As coisas que você considera importantes não são tão importantes. Eu ganhei um Prémio Nobel. E daí?» ( para Pilar del Rio, jornalista espanhola e sua terceira mulher)
Comunista, Saramago sempre foi um ateu convicto. Seu primeiro emprego foi de serralheiro mecânico. Assim como o brasileiro Carlos Drummond de Andrade, Saramago trabalhou durante muito tempo como funcionário público.
Terra do Pecado, o primeiro livro de Saramago, foi publicado quando ele tinha apenas 25 anos.Após Terra do Pecado, Saramago só viria a publicar outro romance 30 anos depois. Terra do Pecado saiu em 1947 e Manual de Pintura e Caligrafia em 1977.
O escritor foi acusado de anti-semitismo por declarar em uma entrevista a um jornal brasileiro que “os judeus não merecem a simpatia pelo sofrimento por que passaram durante o holocausto”. Na verdade, Saramago tentou criticar a posição de Israel no conflito israelense-palestino.
Ele também foi duramente criticado pela direita norte-americana quando ganhou o prêmio Nobel de literatura, talvez por seu ateísmo e suas posições políticas de esquerda.Saramago foi um grande crítico do Papa Bento XVI na época em que ele respondia apenas por Cardeal Joseph Ratzinger.
Sua mudança de Portugal para as Ilhas Canárias ocorreu, pelo menos em grande parte, por causa das críticas ao livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo.
BIBLIOGRAFIA :
Os livros de José Saramago publicado no Brasil são: "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (1988), "A Jangada de Pedra" (1988), "História do Cerco de Lisboa (1989), "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" (1991), “Manual de Pintura e Caligrafia” (1992), "In Nomine Dei" (1993), “Objecto Quase” (1994), "Ensaio sobre a Cegueira" (1995), "A Bagagem do Viajante (1996),"Memorial do Convento" (1996), "Cadernos de Lanzarote" (1997), "Todos os Nomes" (1997), "Viagem a Portugal" (1997), "Que Farei com Este Livro?" (1998), "O Conto da Ilha Desconhecida" (1998), "Cadernos de Lanzarote II" (1999), "A Caverna" (2000), "A Maior Flor do Mundo" (2001), "O Homem Duplicado" (2002), "Ensaio sobre a Lucidez" (2004), "As Intermitências da Morte" (2005), "Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido" (2005), "A Jangada de Pedra" (2006, edição de bolso), "As Pequenas Memórias" (2006),"A Viagem do Elefante" (2008), "O Caderno" (2009) e "Caim" (2009).
OBS IMPORTANTE :
O Conto da Ilha Desconhecida in http://www.releituras.com/jsaramago_menu.asp.
Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.
(...)mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és...
(...) é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós.
(...)o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e se elas estão juntas, reúne-as...
O livro de Agosto /2010
Esse livro foi escolhido para leitura dos nonos anos em dezembro de 2009.O objetivo era , e é, introduzir o aluno em um texto reflexivo, ousado...Apresentar-lhes um autor que faz parte do mundo-leitor contemporâneo, que nos desafia no processo linguístico e temático. Infelizmente,Saramago " ficou encantado" ( como diria Guimarães Rosa), o que não nos impede de conhecê-lo nesta e em outras obras incríveis.
Que a leitura desse texto seja " a porta" para os demais,porque através deles pode-se saber muito sobre a vida , mas muito mais sobre nós mesmos.
"Buscar a si mesmo" na imagem poética de uma ilha misteriosa, assim como são misteriosos os sonhos humanos, reflete um desejo universal, desde tempos ancestrais.
É filosófico afirmar que "todo homem é uma ilha", e o personagem do conto quer descobrir a si mesmo, o sentido de sua existência.
A ilha desconhecida é a imagem metafórica da consciência, de "o mundo interior". E se somos ilhas, aí está um exercício de autoconhecimento.
http://www.releituras.com/jsaramago_conto.asp - É imprescindível ler mais para tornar-se melhor.
sábado, 3 de julho de 2010
quinta-feira, 1 de julho de 2010
in " O Conto da Ilha Desconhecida"-Saramago.
Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.
(...)mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és...
(...) é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós.
(...)o sonho é um prestidigitador hábil, muda as proporções das coisas e as suas distâncias, separa as pessoas, e se elas estão juntas, reúne-as...
A Ilha Desconhecida fez-se enfim ao mar, à procura de si mesma.
O livro de Agosto /2010
Esse livro foi escolhido para leitura dos nonos anos em dezembro de 2009.O objetivo era , e é, introduzir o aluno em um texto reflexivo, ousado...Apresentar-lhes um autor que faz parte do mundo-leitor contemporâneo, que nos desafia no processo linguístico e temático. Infelizmente,Saramago " ficou encantado" ( como diria Guimarães Rosa), o que não nos impede de conhecê-lo nesta e em outras obras incríveis.
Que a leitura desse texto seja " a porta" para os demais,porque através deles pode-se saber muito sobre a vida , mas muito mais sobre nós mesmos.
Boas férias, crianças!
"Buscar a si mesmo" na imagem poética de uma ilha misteriosa, assim como são misteriosos os sonhos humanos, reflete um desejo universal, desde tempos ancestrais.
É filosófico afirmar que "todo homem é uma ilha", e o personagem do conto quer descobrir a si mesmo, o sentido de sua existência.
A ilha desconhecida é a imagem metafórica da consciência, de "o mundo interior". E se somos ilhas, aí está um exercício de autoconhecimento.
http://www.releituras.com/jsaramago_conto.asp - É imprescindível ler mais para tornar-se melhor.
domingo, 13 de junho de 2010
Finalizando..." a revolução é uma pátria e uma família.”
Capitães da areia.
Os Capitães da Areia são um grupo de meninos de rua. O livro é dividido em três partes. Antes delas, no entanto, via-se uma sequência de reportagens e depoimentos, explicando que os Capitães da Areia é um grupo de menores abandonados e marginalizados, que aterrorizam Salvador. Os únicos que se relacionam com eles sem considerá-los bandidos são Padre José Pedro e a mãe-de-santo, Don'Aninha.
A primeira parte:"Sob a lua, num velho trapiche abandonado" conta algumas histórias quase independentes sobre alguns dos principais Capitães da Areia (o grupo chegava a quase cem, mas tinha líderes). Pedro Bala, o líder, de longos cabelos loiros e uma cicatriz no rosto, uma espécie de pai para os garotos, mesmo sendo tão jovem quanto os outros, e que descobre ser filho de um líder sindical morto durante uma greve; Volta Seca, afilhado de Lampião, tem ódio das autoridades e o desejo de se tornar cangaceiro; Professor, lê e desenha , muito talentoso; Gato, com seu jeito malandro acaba conquistando uma prostituta, Dalva; Sem-Pernas, o garoto coxo serve de espião fingindo-se de órfão desamparado (e numa das casas a que vai é bem acolhido, mas trai a família , mesmo sem querer fazê-lo de verdade); João Grande, o "negro bom" como diz Pedro Bala, segundo em comando; Querido-de-Deus, um capoeirista amigo do grupo, que dá algumas aulas de capoeira para Pedro Bala, João Grande e Gato; e Pirulito, que tem grande fervor religioso. O apogeu da primeira parte é dividido em, quando os meninos se envolvem com um carrossel mambembe que chegou na cidade; e quando a varíola ataca a cidade, matando um deles, mesmo com Padre José Pedro tentando ajudá-los e se indo contra a lei por isso.O homossexualismo é comum no grupo, mesmo que em dado momento Pedro Bala tente impedi-lo de continuar.Todos eles costumam "derrubar negrinhas" no areal,bebem, fumam como se fossem adultos.
A segunda parte :"Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos teus olhos",é uma história de amor. A menina Dora torna-se a primeira "Capitã da Areia".Mesmo que inicialmente os garotos tentem tomá-la a força, ela se torna mãe e irmã para todos. Professor e Pedro Bala apaixonam-se por ela, e Dora se apaixona por Pedro . Quando Pedro e ela são capturados (pois em pouco tempo passa a roubar como um dos meninos), eles são muito castigados, respectivamente no Reformatório e no Orfanato. Quando escapam, muito enfraquecidos, se amam pela primeira vez e ela morre de febre, marcando o começo do fim para os principais membros do grupo.
"Canção da Bahia, Canção da Liberdade", a terceira parte, vai nos mostrar a desintegração dos líderes do grupo. Sem-Pernas se mata antes de ser capturado pela polícia -que odeia; Professor parte para o Rio de Janeiro para se tornar um pintor de sucesso, entristecido pela morte de Dora; Gato torna-se uma malandro de verdade, abandonando sua amante Dalva, e passando por ilhéus; Pirulito consegue seguir a vocação religiosa,tornando-se frade; Padre José Pedro finalmente recebe uma paróquia no interior, e vai para lá ajudar os desgarrados do rebanho do Sertão( cangaceiros); Volta Seca torna-se um cangaceiro do grupo de Lampião e mata mais de 60 soldados antes de ser capturado e condenado; João Grande torna-se marinheiro; Querido-de-Deus continua sua vida de capoeirista e malandro; Pedro Bala, cada vez mais fascinado com as histórias de seu pai sindicalista, vai se envolvendo com os doqueiros e finalmente os Capitães de Areia ajudam-no em uma greve. Pedro abandona a liderança do grupo, mas antes os transforma numa espécie de grupo de choque. Assim deixa de ser o líder dos Capitães de Areia e torna-se um líder revolucionário comunista procurado pela polícia em vários estados.
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