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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

A Terceira Margem....(segunda parte)


Continuação do post de 24 /10...

O narrador, como que iluminado por uma Revelação, descobre a chave de sua angústia. Dirigindo-se ao rio, propõe ao pai que troque de lugar com ele, que então assumiria esse papel. As palavras do narrador traduzem o sentido latente da opção feita pelo pai: tem de haver alguém que ouse desafiar as regras estabelecidas, que proponha o novo, o diferente, o inesperado. Seu apelo é marcado pela urgência:


- “Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.


As palavras do filho, que pede para substituí-lo, são as únicas que fazem sentido para esse homem. Ao se oferecer para continuar a missão iniciada, o filho demonstra ter compreendido o significado da demanda paterna. Como no mito de Caronte, o barqueiro da fábula, a libertação só poderia ocorrer quando alguém, espontaneamente, com ele trocasse de lugar. O pai atende ao apelo, mas o narrador fraqueja:

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. (...) E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.


A terceira margem do rio apresenta alguns elementos recorrentes na ficção rosiana. A imagem da travessia como alegoria do viver. Uma vez que a travessia traz consigo toda a simbologia da existência humana, a escolha do pai pela terceira margem sugere, simultaneamente, a defesa de um espaço de exceção, expresso pela margem, e a inserção do insólito, no entrelugar, no não-lugar indicado pela referência a uma terceira margem. Significativamente, a simbologia do três indica a fase final de um conflito, a sua resolução:
(...) O três equivale à rivalidade (o dois) superada; exprime um mistério de ultrapassagem, de síntese, de reunião, de união, de resolução.

O espaço escolhido pelo pai denota não mais o uno e o absoluto ou a bipolaridade, mas o momento terceiro, em que as contradições e opostos estão reunidos. Em termos filosóficos, isso equivale à obtenção da síntese, apogeu do processo dialético, momento de equilíbrio. O fato de o pai, em vez de chegar a algum lugar, preferir continuar na canoa, traduz a sua consciência do aspecto mutável da existência. Se a travessia representa a vida, a embarcação seria o próprio meio de conduzi-la, e é a singularidade com que o pai o faz o que o coloca como um ser de exceção.

O contraste entre o modus vivendi do pai e o senso comum é mostrado pela sua relação com o filho. Aquele que poderia continuar o projeto do pai fracassa por duas vezes em virtude de sua covardia. Na primeira, no momento da partida do pai, quando este faz menção de levá-lo consigo mas desiste quando percebe o seu medo e, já adulto, quando propõe a substituição mas foge ao combinado.

A dicotomia medo/coragem faz parte do universo rosiano, sendo apontada como uma das grandes linhas estruturais de Grande Sertão:Veredas. A coragem aparece como um dos atributos mais valiosos do ser humano, devendo o medo ser superado. Uma das provas de qualquer iniciação consiste no enfrentamento de situações de perigo ou desconhecidas. O maior contraste entre pai e filho n’A terceira margem do rio é justamente a ousadia de um e o medo do outro. Se o rio é a vida, é com determinação e ímpeto que o pai enfrenta os obstáculos, parecendo por vezes dotado de uma força sobre-humana:

(...) O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis do meio-do-ano. (...) Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, (...) aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo - de espanto de esbarro.

Contrastando com tamanha obstinação, vemos o narrador, duas vezes fracassado, sendo vítima de pequenos males, nada muito arrebatador. Ao se negar o desafio do pai, condena-se a uma existência medíocre e cotidiana, marcada por reumatismo e cansaço:

Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio - rio - rio - pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice - esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perenguice de reumatismo.


A vitalidade do pai parece derivar da vida livre que escolheu para si, e torna ainda mais flagrante a mesmice da vida comum, “apenas um demoramento”. Elucidativas são as palavras finais do narrador, que lamenta a própria condição:

(...) Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro - o rio.

A constatação da própria mediocridade leva o narrador a questionar a sua humanidade. Sua falência enquanto indivíduo é permeada por negativas, pois é “o que não foi”, numa indicação de uma existência que não se justificou, e “o que vai ficar calado”, ao contrário do pai, cuja ausência disse tanto. Após confessar sua pequenez, o narrador pede que, na sua morte, seu corpo seja colocado numa canoa para vagar rio afora. Curiosamente, apesar de escolher o mesmo destino do pai, o filho mais uma vez se isenta de ser agente desse destino, pois pede para ser colocado, numa postura passiva. Teme ficar às margens, pois sabe que isso representa a exclusão social. Oscila entre a aventura proposta pelo pai e o porto seguro que lhe ensinaram a manter. Sua travessia é serena; sua rota, pré-traçada. A vida, travessia arriscada e fascinante, por vezes amedronta. “Viver é muito perigoso”. “Carece de ter coragem.”

Um comentário:

  1. É... "Carece de ter coragem". Gostei muito da análise. Esse é o meu conto favorito de Guimarães Rosa. Acalentou minh'alma. Abraço! E vamos confiar na vida! ;)

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