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domingo, 7 de novembro de 2010

A terceira margem do rio :um texto plural.


Um texto é plural; não que tenha vários sentidos, mas o próprio plural do sentido é realizado por meio do texto. Poderíamos dizer que a partir de um texto podem surgir outros textos, dependendo do ponto de vista com que o analisamos e de determinadas palavras e/o expressões que ensejam nova interpretação. ( Bakhtin e Barthes)


É possível perceber que o narrador de A terceira margem do rio utiliza, em todo o texto, palavras como: pai, mãe, irmão, irmã, além dos pronomes a gente,nosso, meu, minha, eu, nós, meninos, dentre outras. Observe-se que a palavra pai é sempre utilizada posposta em relação ao pronome possessivo nosso. Isso possibilita ao leitor verificar que, assim como o narrador, os irmãos dele também perderam o pai, uma vez que são irmãos; porém é o protagonista quem mais sofre e não aceita a morte do pai, ficando assim na ‘terceira margem do rio’, no irreal, no transcendental *.
*transcendente
1. Sublime.
2. Superior que está acima das ideias e conhecimentos ordinários.
3. Que excede os limites ordinários.
4. Que se ocupa das questões mais elevadas.

Aparentemente, esse conto não tem coerência, pois, numa leitura superficial, corremos o risco de pensar que tal conto trata apenas de uma personagem que sente saudades do pai, o qual flutua numa canoa rio abaixo, rio acima, sem chegar a uma ou a outra margem do rio.É que o/a leitor/a não aceita facilmente a possibilidade de alguém não chegar a uma ou outra margem. Não faz sentido lógico que o rio possua uma terceira margem. No entanto, do ponto de vista metafórico, podemos, como leitores, compreender que a imagem do pai só era vista por um jovem na sua saudade e no seu desejo.


Quão difícil é para uma criança aceitar a morte do pai, principalmente se ao invés de dizer a verdade, a mãe a omite e cria outras estórias, dizendo que o pai da criança partiu para uma viagem, ou algo semelhante. Isso ocorre porque nem sempre as metáforas são compreendidas pelas crianças, não da mesma forma que os adultos. Talvez pelo fato de a criança compreender tudo de forma literal.

Se recorrermos ao dicionário de símbolos, veremos que “rio” representa a passagem da vida para a morte. Foi isso que fez o homem da canoa ao “ficar encantado”. Se o/a leitor/a observar bem, perceberá as semelhanças entre a canoa de A terceira margem do rio com um caixão para defuntos. Não sendo assim, para que uma canoa tão resistente e tão pequena,senão para servir de caixão? Percebe-se isso na seguinte passagem do conto: “mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim e me depositem também numa canoinha de nada, nessa, água, que não pára, de longas beiras: e, eu rio abaixo, rio afora, rio a dentro – o rio.’’ (ROSA, 2001, p. 85).

Mesmo com todas essas evidências, o protagonista de A terceira margem do rio, não se convenceu de que seu pai de fato morrera; e insiste em procurá-lo à margem do rio no qual foi deixado, e, como se isso não bastasse, ele leva consigo roupas limpas e comidas para seu pai e não compreende a insistência deste em remar, em não voltar mais para casa. O que mais o intriga é o fato de seu pai nunca mais ter saído daquela canoa, nem chegar a qualquer margem, seja a dos vivos, seja a dos mortos.

Para o protagonista, seu pai teve uma atitude incompreensível, porém louvável, já que para “morar numa canoa” é necessária muita coragem. Podemos considerar que o menino,depois de adulto, manteve o pai vivo por meio de suas atitudes e ações.

Assim, depois das informações sobre o rio, de seu significado para os gregos,(*Caronte)pensamos ser possível falar da terceira margem do rio, que é o transcendental, o não real. É aí que está situado o  protagonista, já que não aceita a realidade, a morte de seu pai, e, com isso, vive o irreal, o imaginário e sonha um dia poder abraçar seu pai e até trocar de lugar com ele.

Percebemos que o protagonista não aceita a perda/morte de seu pai, como podemos ver nos seguintes fragmentos: “sem alegria e nem cuidado, nosso pai decidiu um adeus para a gente [...] nosso pai entrou na canoa e desamarrou pelo remar (ROSA, 2001, p. 80). E mais adiante: “Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada [...] mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho.” “Isso, que fiz e refiz, sempre, tempos a fora”. Rosa (2001, p.81)

Esse conto é, segundo esta análise, uma metáfora da morte, em que a canoa representa o caixão e a travessia do rio, a passagem da vida para a morte.


E, finalmente, gostaríamos de citar mais um fragmento de Rosa (2001, p. 85), “Pai, o senhor está velho já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem e eu , agora mesmo, quando que seja , a ambas vontades , eu tomo o seu lugar, do senhor na canoa ! [...]”.


Pensamos ser esse o momento em que o protagonista aceita a morte de seu pai, pois, é aí que ele mais sofre, e só então percebe e aceita que o homem da canoa já não vive e que não há como trocar de lugar com alguém que já está morto, não há como inverter as margens do rio. Depois disso, o narrador-protagonista retorna para a primeira margem, para o lado de quem está vivo e consciente.


*Caronte era um barqueiro velho e esquálido, mas forte e vigoroso, que tinha como função atravessar as almas dos mortos para o outro lado do rio Aqueronte ( mitologia).


Texto adaptado da análise  feita por
Raimunda Delfino dos SantosProfessora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Acre.
 

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