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domingo, 26 de setembro de 2010

“Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída"

O conto “Famigerado”, realçando o poder da palavra e a importância do jogo lingüístico na construção de identidades, identifica traços culturais no encontro ou confronto de uns personagens com outros.


As diferentes identidades culturais constroem-se num espaço lingüístico literário, arena dialética em que se instalam dúvidas, questionamentos e medos, em que se instalam, enfim, identidades diversas.


Sabendo que o medo é uma das quatro emoções básicas do ser humano e que a coragem pode advir dele, vemos na personagem narradora atitudes temerosas e comportamentos corajosos advindos, certamente, de seu medo.


Há também precauções do narrador exemplarmente reveladoras de um clima de insegurança e medo: “... a frente da minha casa reentrava, metros da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo.”; “cheguei à janela” . Esses trechos demonstram ser o narrador permanentemente dotado de medo que, certamente, tem a ver com experiências por ele vividas ou conhecidas. Há que se considerar que a emoção do medo, mesmo sendo básica, não é inerente ao homem. Este a possui culturalmente, após conhecimentos e, ou, experiências que a desencadeiam. Tanto é cultural que ele, o narrador, desenvolveu meios próprios e adequados para lidar com seu medo.


Não só o narrador, mas os “tristes três” ( as testemunhas)mantêm o tempo todo um diálogo com o medo, conforme atestam os trechos: “e embolados, de banda, ...”; “... constrangidoscoagidos, sim.”; “... o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los”; “... intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam”; “... enquanto barrava-lhes qualquer fuga”; “... intugidos até então,mumumudos.”; “Estes aí são de nada não.”; “Satisfez aqueles três: - vocês podem ir compadres. (...) e eles prestes se partiram”.


Daí, deduzimos que a característica emocional,fundamental dos “tristes três”, é também o medo. E, se vemos Damázio como o valente, corajoso, não podemos afirmar que também ele não guarda o seu medo; isto porque há uma relação confusa e muito difundida culturalmente “entre medo e covardia, coragem e temeridade” .


Há em Damázio dois sentimentos: um positivo e outro negativo, mas não seria coerente, do ponto de vista cultural, Damázio dar ares de medo.
Mas, o que, senão o medo, ou este mais atenuado - a insegurança - teria mobilizado Damázio? Citando Delpierre, Jean Delumeau esclarece que “A palavra ‘medo’ está carregada de tanta vergonha que a escondemos. Enterramos no mais profundo de nós, o medo que nos domina as entranhas” .


Daí podemos postular que medo e coragem se encontram sempre - é nos momentos de medo, de grandes pavores que a coragem se aflora e realiza grandes atos positivos ou negativos. O narrador movido
pelo medo, consegue “gambelar” Damázio, e o faz de uma forma não muito honesta mas, sem dúvida, de uma forma competente.


Assim eles reafirmam sua identidade cultural: Damázio retorna, convencido de que não fora enganado, sabe que é um valente; o narrador, por sua vez, sabe lidar com as palavras e com elas ele
“evita o de evitar”, reforçando também sua identidade.
Embora o medo seja um elemento cultural pertinente a todos os personagens, todos eles também se identificam pela valentia. No final, o narrador é exaltado por Damázio como um macho um
valente ao dizer: “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída”.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Famigerado:os embates da ignorância contra o conhecimento



Essa Narrativa empenha-se em traduzir o significado de uma palavra – “famigerado” - onde todo o seu enredo é centrado em torno desse termo, o que leva a inferir que o tema do texto é a própria linguagem, estabelecendo-se, assim, como uma narrativa metalinguística. A narrativa acontece na primeira pessoa, constitui-se num episódio cômico, quando a lemos como se fosse uma adivinha às avessas, invertendo as posições do inquiridor e do questionado.

Desta forma, seu enredo nos envolve revelando uma riqueza de procedimentos estilísticos, trazendo como temática de fundo a modernização do sertão nos anos 60, o embate entre o letrado e o jagunço revela tensões e ambiguidades, abordadas pela estilística e pela psicanálise.

O personagem letrado é o próprio autor, que descreve o seu confronto em palavras com o perigoso jagunço, conhecido e temido na região, que ao chegar aflito em sua residência, deseja saber o significado da palavra “famigerado”.

É interessante notar a constante preocupação de cada um dos personagens em descobrir o que existe por detrás das palavras, o jagunço desejando ter posse do conhecimento, uma vez que suas ações dependiam disso e o narrador querendo saber o motivo da curiosidade do jagunço em querer desvendar o significado de tal palavra, ao mesmo tempo, permeado pelo medo de que tenham feito uma possível intriga contra ele. Para isso, de forma temerosa o homem culto, tinha que procurar ler nas entrelinhas das palavras do jagunço para entender suas mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios, para dar-lhe uma reposta “agradável”.

Então, o autor personagem, receoso de revelar o verdadeiro sentido da palavra, mente, pois teme a violência do jagunço contra o “moço do Governo” que assim o havia chamado. Ele explica que “famigerado” quer dizer “célebre”, “notório”, “notável”. Damázio, o jagunço, depois de tranqüilizado com a resposta do médico, agradece e vai embora, antes, porém, considera que: “Não há como as grandezas machas de uma pessoa instruída”.

Nesse conto podemos opor o poder da força ao poder da instrução, (a força do jagunço e o conhecimento do médico), o do letrado ao do não-letrado, representando ainda os embates da ignorância contra conhecimento, da força física contra força intelectual (na violência e nas armas de Damázio e no poder das palavras).

Ademais, verificamos que ocorre um processo metonímico de uma situação mais ampla, o embate entre sertão e cidade, que ainda se configura em outros embates como o do governo e da jagunçagem, o do moço do Governo e o do jagunço Damázio. Nesse sentido, percebemos que o dualismo é a chave de interpretação da estória, que se baseia em dois princípios opostos e coexistentes. São duas forças opostas que coexistem sem se negar, como os outros dualismos do conto.

domingo, 19 de setembro de 2010

Mais Guimarães Rosa : por quê? Porque a gente merece o melhor!


Famigerado
Guimarães Rosa

Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.

Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.

Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.

Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:

"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."

Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.

— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."

Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:

— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."

Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:

— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?

— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."

Se sério, se era. Transiu-se-me.

— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"

Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:

— Famigerado?

— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:

— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."

Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.

— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...

— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"

— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...

— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"

— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...

— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"

Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:

— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...

— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.

Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.


Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 13, cuja compra recomendamos.

http://www.releituras.com/guimarosa_menu.asp texto integral

sábado, 18 de setembro de 2010

"Para o pobre, os lugares são mais longe."


Sorôco, sua mãe, sua filha

Conto narrado em terceira pessoa, mas com a participação ambígua do narrador como personagem. Isto se dá pelo fato do narrador ser um observador dos fatos, mas também fazer parte do povo: “A gente se esfriou (…)” “A gente estava levando agora o Sorôco (…)” Ou seja, “a gente “, no conto, pode ser a gente, o povo da estação, como também o marcador oral “a gente” enquanto nós.

O conto tem uma temática triste, trabalha com o sentido circular de passar a angústia do personagem Sorôco com sua solidão e desespero ao ter que deixar ir para longe as únicas pessoas que tem no mundo, ficando mais solitário ainda. Tudo gira em torno da separação, da perda, da ausência e da distância.

A grande temática do conto é a solidariedade. Há a compaixão do povo para com Sorôco e sua dor. O povo se solidariza com Sorôco. A irracionalidade entoada na cantiga da mãe e da filha loucas realiza o elo de ligação entre as dores de todos os homens. É uma cantiga compreendida só por aqueles que possuem sentimento, a razão de ser do humano. Esta cantiga metaforiza a união entre os homens por meio da solidariedade.

É possível imaginar o sofrimento de Soroco, o vazio dolorido sentido e a profunda solidão na alma. A solidão só não é absoluta, porque existe a solidariedade do povo acalentando seu coração.

Pode-se observar também as sugestões sonoras oferecidas pelo nome do personagem: Sorôco – só louco; Sorôco – socorro, como compreensão do forte sentido do contexto do texto. Por outro lado, é interessante perceber a gradação do título, sugerindo a união da família como vagões que se engatam no trem da existência e se desengatam no destino. Cada vagão carrega sua própria solidão e dor, mas forma o trem da solidão e da dor coletivas, na metáfora de uma cantiga.



Enredo

O conto inicia com a descrição de um vagão diferente, gradeado, que seria levado pelo “trem do sertão”. A população sabia que ele levaria “duas mulheres, para longe, para sempre”: a mãe e a filha de Sorôco. “A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo.” Homem simples e rude, vivia com sua mãe e sua filha. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

Mãe e filha eram loucas. Sorôco tentou ficar com as duas ao seu lado, mas não foi possível. Tomou a decisão mais difícil de sua existência: interná-las. O governo mandaria o trem para levá-las para Barbacena, longe. "Para o pobre, os lugares são mais longe." Sorôco deveria encaminhá-las à estação, pois "o trem do sertão passava às 12h45m."

Sorôco seguiu para a estação acompanhando as duas, uma de cada lado, “parecia entrada em igreja, num casório.” O povo esperava, protegendo-se do sol. "As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam (...) Sempre chegava mais povo - o movimento." Alguém avisa que Sorôco aponta da Rua de Baixo, onde mora. Ele vestia a sua melhor roupa para a despedida, que a população acompanhava com pesar – “Todos diziam a ele seus respeitos, de dó.” Diziam palavras que tentavam consolá-lo e ele muito humilde respondia: - "Deus vos pague essa despesa..."

Todos compreendiam a atitude de Sorôco, pois não havia outro jeito.Porém todos pensavam que a partida delas seria bom para ele, visto não haver cura para a doença e também pelo fato de elas terem piorado nos últimos 2 anos, a ponto de Sorôco pedir ajuda médica para elas.

Em frente ao trem, a filha de Sorôco começa a cantar uma cantiga que ninguém entende. A mãe de Sorôco começa a cantar também a cantiga entoada pela moça, antes de serem alojadas dentro do trem. Principia o embarque das duas. E o canto ecoa longe. Sorôco não espera o trem desaparecer de vez, nem olha, fica de chapéu na mão calado. "De repente, todos gostavam demais de Sorôco."

O trem partiu e “Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava.” Todos os presentes ficaram condoídos com o sofrimento do homem. Entretanto, Sorôco pára e “num rompido – ele começou a cantar. Alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.” E eis que “todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com vozes tão altas! (...) A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.”

Ocorre então uma atitude coletiva aparentemente irracional: “E foi sem
combinação, nem ninguém entendia o que fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco,
principiaram também a acompanhar esse canto sem razão” . Nessa
procissão coletiva, a “loucura” (remanescente no canto) readquire algo do caráter
sagrado que ela possuía em tempos arcaicos, anteriores à soberania social da razão.

O rito social da separação espacial dos “loucos” é, assim, seguido de um
impulso de união psíquica dos “sãos”, que vão em socorro de Sorôco. A palavra
“socorro”, quase anagrama de Sorôco, já havia aparecido no texto: “Tiveram de olhar
em socorro dele”. O socorro, que fora inicialmente tentado pela via racional, só vem
de fato nesse fim do conto: “A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga”. O“lugar nenhum” revela-se como lugar comum. O lugar físico dos “loucos” e dos
“sãos” pode ser determinado, mas o canto “louco” os irmana num “lugar nenhum”
que, como sempre, em Guimarães Rosa, parece designar o inconsciente, de onde, felizmente,tanto podem vir os impulsos agressivos, quanto os impulsos amorosos
.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O mundo mágico de Guimarães Rosa : Sorôco



Personagens como as crianças,os velhos e os loucos são seres intuitivos, portadores de uma vocação mágica. A eles é dada a liberdade de criar seus mundos, livres de racionalismo, podendo perceber e atingir revelações profundas. Para o autor, nosso mundo é apenas uma passagem para um mundo espiritualmente complexo

A partir de fatos banais, o autor discute temas que são universais, questões metafísicas que desde sempre angustiam o ser humano.Ocorrem momentos epifânicos, isto é, que revelam e iluminam toda a existência da personagem. Desses pequenos “causos”, como diriam os sertanejos do norte de Minas Gerais, o autor extrai lições de vida, mesmo quando usa uma carga de humor.

Há uma clara noção, em alguns contos, de que existiria uma força natural que, por meios os mais variados possíveis, faz com que o destino das pessoas se cumpra.


SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA

Neste conto verifica-se duas características típicas de Guimarães Rosa. A primeira é a ortografia própria, que chega a se desviar muitas vezes do padrão gramatical. Nada justifica o acento na palavra “Sorôco”. Além disso, como em muitas personagens, o nome do protagonista carrega um significado oculto. A sonoridade da palavra lembra “ser oco”, ou seja, alguém que busca o desapego.

É a condição para realizar o salto, a transcendência comum nos contos de Primeiras Estórias.

Sorôco é comparado a Jó, personagem da Bíblia, por causa de seu sofrimento. Tem uma mãe e uma filha loucas. Passado e futuro. Ele, no meio. Ele, a terceira margem. A eternidade. E as proporções gigantescas dele lembram as personagens grotescas que são castigadas, eliminadas em outros contos. O padecimento a que foi submetido ao cuidar das duas, no entanto, redimiu-o.

O conto inicia-se com o protagonista levando suas parentas para a estação de trem, em que pegarão um trem que as levará a um hospício em Barbacena. A cidade inteira está na estação, como numa espécie de apoio num momento difícil. É o que os segura de rirem das duas figuras tão despropositadas.

Quem é Jó?
O Jó da Bíblia é aquele personagem rico, que tinha uma importante posição social. Satanás tirou dele toda a riqueza, os filhos e, finalmente, a sua saúde, com o consenso de Deus. Aqueles que conviviam com ele diziam que tudo aquilo era uma punição de Deus por eventuais pecados. Também a sua esposa condividia essa opinião e sobretudo os seus 3 amigos, Elifaz, Bildad e Zófar, que porém estão a seu lado depois que é expulso da cidade, não por solidariedade, mas para explicar a ele as razões da sua desgraça. Apesar disso, Jó não abandona a Deus. Ele, por isso, é recompensado, e Deus lhe dá novamente 10 filhos e dobra a sua riqueza precedente.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O diferente, o outro, a loucura, mas, sobretudo, a solidariedade.



TEXTO INTEGRAL -extraído de http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php


Sorôco, sua mãe, sua filha


AQUELE carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.


As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.

A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que nas pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.

O Agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. – "Vai ver se botaram água fresca no carro..." – ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: – "Eles vêm!... " Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer de comitiva.

Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papeis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça, nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.

Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles transmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta de Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: – "Deus vos pague essa despesa... "

O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.

De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – "Ela não faz nada, seo Agente..." – a voz de Sorôco estava muito branda: – "Ela não acode, quando a gente chama..." A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outroras grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.

Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautela, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer míngua, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.

Agora, mesmo, a gente só escutava era o acorcôo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.

Sorôco.

Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre. Sorôco nâo esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falaram: – "O mundo esta dessa forma... " Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavam demais de Sorôco.

Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, pra ir-s'embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.

Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.

A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó do Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando, com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi o de não sair mais da memória. Foi um caso sem comparação.

A gente estava levando agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.




OBS: Denso e sofrido, lindo, triste,humano...alguns adjetivos que cabem a esta estória de solidão e companhia.