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domingo, 24 de outubro de 2010

Pai e filho : a ousadia de um,o medo do outro


A TERCEIRA  DA MARGEM DO RIO. ( primeira parte)

O conto narra a história de um homem que repentinamente manda construir uma canoa, passando a habitar a terceira margem do rio. É narrado pelo filho, que parece buscar na enunciação um sentido para o acontecido. As primeiras referências ao pai mostram ter sido ele sempre ligado à regra, aos padrões vigentes, à normalidade:


Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros conhecidos nossos.


Mais do que a preocupação em caracterizar o pai, as palavras do narrador denunciam a tentativa de retratá-lo como um homem normal, em nada destoando dos outros pais do lugar. Depois de se isolar na canoa, o pai entra na categoria do diferente, e isso choca o senso comum:

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.


Ao dizer que “aquilo que não havia, acontecia”, o narrador evidencia a atitude vanguardista do pai, que ousou buscar a diferença. O termo invenção sugere ainda a postura criativa no ato de realizar algo nunca feito antes. Lenira Marques Covizzi, em seu estudo acerca do elemento insólito na obra de Guimarães Rosa, destaca alguns aspectos recorrentes nesses contos marcados pela estranheza:

Os personagens das Primeiras Estórias são sempre seres de exceção, por diferentes motivos. Seja por especial estágio etário de evolução (...), atitudes pouco comuns, atitudes surpreendentes, transgressão às regras sociais, atuação em acontecimentos não habituais, anormalidade físico-psíquica (...)


Entretanto, segundo a autora, os personagens que manifestam essa exceção são dotados de coerência, ainda que ela não seja percebida por aqueles que os rodeiam: Há sempre uma determinação, uma vontade, uma certeza, uma calma da parte do personagem, que parece conhecer, dominar a situação, saber o que está fazendo, em oposição à perspectiva de dúvida, de espanto, de perplexidade, que é do narrador e do leitor ignorantes, não viventes da situação.

E, enquanto os outros tentam justificar de modo racional o isolamento do personagem, este mantém-se cada vez mais firme em sua escolha:

(...) Nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente.


Observe-se que o narrador estabelece uma aproximação entre os termos solto e solitariamente, associando solidão e liberdade. Dessa forma, começa-se a vislumbrar o possível motivo que teria levado o pai a buscar o isolamento.

Após o choque causado pela partida do pai, aos poucos a vida parece voltar ao normal, e nem mesmo auxílio espiritual ou força policial conseguem demovê-lo de seu exílio. Sua reclusão aproxima-o do arquétipo do eremita, representação simbólica do indivíduo que se afasta voluntariamente do convívio dos homens. Sua opção de vida consiste no abolir das regras e modelos que pautam a vida em sociedade, o que se verifica no conto: “por todas as semanas, e meses, e os anos - sem fazer conta do se-ir do viver”(Cf. Primeiras Estórias, p.34).

Tudo segue seu rumo, com a passagem do tempo indiciada pela sucessão de casamentos, nascimentos e batizados. O pai, tendo renunciado aos hábitos culturais e de higiene, torna-se cada vez mais natural e primitivo, sofrendo um processo de animalização, como se depreende das palavras do filho:

(...)Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virava cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de um bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Com o passar do tempo todos vão partindo, até que o narrador se vê sozinho. Talvez pelo fato de ter sido o único a quem o pai quisera levar consigo, ele sente-se preso à angústia de tentar compreender o que houve. A partir da atitude radical tomada pelo pai, a família começa a questionar as fronteiras da sanidade, chegando à mesma conclusão expressa por Foucault em sua História da Loucura, segundo a qual todo ser humano possui o seu quinhão de insensatez. Diz o narrador:

(...) Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos.


Tatiana Alves Soares (UFRJ)
                                                                                                        ( CONTINUA...)

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