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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A Ilha Desconhecida : um desafio.



No conto da Ilha Desconhecida há momentos de profundidade que aparentam serem superficiais. Os personagens são muito mais um retrato de suas funções sociais do que de suas características físicas. Assim, o personagem principal, o desbravador de ilhas, é caracterizado apenas como o homem que queria um barco, o homem que tinha um barco ou o homem do leme, e a sua companheira como a mulher da limpeza.

Porém, no decorrer da história, a aparente simplicidade dos personagens se contrasta com a profundidade de seus pensamentos. Talvez a iniciativa de recorrer às funções dos personagens,marcando sua posição hierárquica, transpareça no enredo como uma articulação necessária para retratar a sociedade resultante de um sistema marcado
pelas desigualdades.

Logo no início do conto aparece a questão da hierarquia social, que vai do rei (topo do poder) que estava sempre ocupado na porta das obséquias porque estes eram bem vindos, enquanto as petições não eram resolvidas,passa por vários outros subordinados até chegar à mulher da limpeza, (essa burocracia nos serviços mostra um governo distante de seu maior objetivo:promover o bem-estar do povo), e no momento em que o homem “manda” chamar o rei, e este atende ( por curiosidade), começa uma desordem nesta hierarquia.

Quando o rei desconcertado, por causa do “atrevimento”do homem, senta-se na cadeira de palhinha usada pela mulher da limpeza,que era muito mais baixa e desconfortável que o trono, passa a haver uma aproximação da realeza com o povo, representado aí pelo homem do barco.

O homem estava diante de uma ordem social pronta para dizer não, mas ele apresentou bons argumentos e ,no momento em que o rei disse que não daria o barco, ele -com firmeza e convicção -falou: “Darás”. O rei percebeu que aquele homem era como um instrumento que poderia causar transformações sociais, ainda que primeiro em plano pessoal, mas, posteriormente, com uma inclinação perceptível ao coletivo, por isso, diante da pressão popular e para evitar maiores aborrecimentos, consentiu em atendê-lo, pois assim continuava com a coroa na cabeça, sendo O Rei.

O poder de convencimento do homem em relação à autoridade real foi tão contundente, quanto sua certeza da existência da ilha. Percebemos que para iniciar o processo de descoberta e transformação é necessário que se derrubem algumas barreiras, até mesmo aquelas que parecem estar muito acima de nós.

Após a quebra do obstáculo da posição social, vem a parte mais difícil de sua jornada: a busca da ilha desconhecida. Saramago, através desse conto, faz uma metáfora da necessidade de fazermos a nossa própria viagem em direção a nós mesmos, e traz o passado até nós, lembrando o período das grandes navegações para representar o sentido das descobertas humanas, a busca de si mesmo, de seu mundo interior, ir onde nenhum outro jamais estivera e descobrir verdades profundas escondidas na alma. E seja lá onde se consegue ir, mesmo se a viagem for bruscamente interrompida pela morte, a algum lugar se chega.

“Sim, às vezes naufraga-se pelo caminho, mas, se tal me viesse a acontecer,
deverias escrever nos anais do porto que o ponto a que cheguei foi
esse, Queres dizer que chegar sempre se chega,...”
(SARAMAGO, 1998,
p.27).

O homem do barco procurou ajuda de marinheiros, mas ninguém quis ajudá-lo, porque sair de suas vidas tranquilas e meter-se à procura do “impossível”,enfrentar o mar tenebroso, era tarefa difícil. Seriam necessárias muita coragem e obstinação para ser aventureiro a desbravar novas terras. Mas ele conta com a ajuda de uma mulher (a mulher da limpeza), que resolve sair do palácio pela porta das decisões e passa a acompanhá-lo nessa busca.

“Pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado à hora de mudar de ofício, que lavar e limpar barcos é que era sua vocação verdadeira,no mar, ao menos a água nunca lhe faltaria” (SARAMAGO, 1998,p.24).

Já sabia ela que precisamos estar longe de nós mesmos para podermos enxergar melhor nossa natureza, e que só assim venceremos os obstáculos do caminho , por isso troca sua rotina enfadonha por uma viagem poética em busca de seus sonhos A obsessão do homem contagiara de forma simplista a sensibilidade feminina.

Também é apresentado no texto um processo de recomeço e de renovação,no qual aparece o sonho não como um qualquer, mas mostrando-nos que é preciso navegar para além do real, resistindo às adversidades para que nos tornemos aptos à concretização do sonho e possamos ancorar em porto seguro.

Todos estes fatores que vão das adversidades até o “navegar para o
além do real” permite a aproximação entre o “homem do barco” e a “mulher da
limpeza”, “Acordou abraçado à mulher da limpeza, e ela a ele, confundidos os
corpos”
(SARAMAGO, 1998, p.62), pois do sonho surge o amor, e do amor,
força para enfrentar os pesadelos.

A partir daí os dois passaram não somente a fazerem descobertas exteriores, mas a descoberta de si mesmo.Sabiam eles, agora, que um completaria o outro, que a compreensão das verdades mais profundas, escondidas na alma (como uma ilha) seriam possíveis.

Nomearam o barco que o rei havia lhes dado : “Ilha Desconhecida”, e esta lançou-se enfim ao mar, a procura de si mesma, mostrando que ainda havia muitas descobertas a serem feitas.



OBS:
Saramago é uma "viagem" maravilhosa pela literatura, pela língua portuguesa e um desafio para qualquer leitor que queira aprender e saber mais. OUSE!

3 comentários:

  1. Uma leitura mais detida certamente produziria sentidos outros; no entanto, até onde pude perceber, há uma relação dialética entre exterioridade e interioridade. No domínio da exterioridade, uma hierarquia monárquica que deve ser questionada ou, ao menos, deve permitir a participação popular; no domínio da interioridade, indivíduos que se autoabandonaram. Nos dois casos, vive-se na ilha do conformismo, cada qual em sua região de conforto. É preciso libertar-se dessa condição pelo reconhecimento de si mesmo através da relação com o outro. Surge o amor como forma de autoconhecimento e conhhecimento recíproco, como força que impulsiona (a realização de)o sonho; o sonho como fonte do possível. Superar o imperativo alienante do real; permirtir-se sonhar em que pese a tendência social à castração de tudo quanto possa representar uma ameça ao status quo, ou de tudo quanto represente um ideal ingênuo de vanguarda.

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  2. Isso e muito mais, Bruno
    ...Apenas os alunos em que estou introduzindo Saramago são do nono ano e jamais me permitiria falar com eles de maneira mais profunda do que aquela que você acabou de ler nos posts.

    Primeiro é preciso encantá-los , para que um dia se lancem a "outras viagens".

    Obrigada. beijo.

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