Machado de Assis em fase de plenitude.
A história contada em O Alienista não existiu na realidade material. Desta perspectiva, ela é inverossímil. Porém, a literatura ficcional faz uso da imaginação para produzir uma narrativa, uma verdade e saber legítimos. O que lemos termina por apresentar aspectos verificáveis em personagens e instituições reais, como os hospícios, hospitais, seus loucos e doentes e os encarregados de instituírem a normalidade e curar. Ainda que não verifiquemos similitude plena entre a narrativa literária e a vida material real, ela nos oferece um saber, uma verdade, que nos permite pensar e questionar o real existente. “A arte da ficção cria um texto cuja alta concentração de energias permite a eclosão de uma verdade”.
A literatura, como a ciência, também influi sobre a realidade. Sua presença é perceptível através, por exemplo, da influência de determinadas obras sobre as ações dos seus leitores.A literatura também interfere sobre a formação dos valores dos leitores, expressa épocas históricas determinadas e tem incidência social e política. Ela tanto pode contribuir para a consolidação do ideário conservador, quanto para o seu questionamento. Ela tanto pode fortalecer a elite cultural, na medida em que esta se apropria dos recursos e linguagem, constituindo um capital cultural que tem função distintiva, quanto pode favorecer a resistência aos valores capitalistas sedimentados no elitismo cultural. Dessa forma, a linguagem literária, vale afirmar, o saber produzido pela literatura, é fundamental.
Se o texto científico prima pelo formalismo, pela obediência a regras e procedimentos próprios que o caracterizam enquanto tal, o texto literário também segue convenções, mas é capaz de zombar e ir além delas.
A literatura se fundamenta na imaginação criativa e, portanto, tem a capacidade de narrar qualquer coisa inerente ao existir humano, isto é, á sua potencialidade inata de pensar e criar. E neste exercício, a obra literária, “pode ridicularizar, parodiar qualquer ortodoxia, crença, valor, imaginar alguma ficção diferente e monstruosa” (CULLER, 1999:46). Talvez por isso os governos e a moral religiosa se vejam eternamente forçados a censurar e impedir que a imaginação humana alce vôos acima das suas estruturas autoritárias.
Em linhas gerais, o conto (dividido em treze capítulos) apresenta a cidade de Itaguaí; e como a chegada do médico Simão Bacamarte, apresentado enquanto o “... filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas...” (p.273) , modificaria as relações existentes valendo-se do poder conquistado através da utilização dos experimentos e pensamento científico.
No primeiro momento, nos deparamos com a personalidade científica de Simão Bacamarte presente mesmo na escolha da sua esposa “....D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte”.(p.273-274). Com essa afirmação, o autor reforça a idéia do conto enquanto uma paródia ao cientificismo presente nas idéias transplantadas para o Brasil, através dos representantes da elite local, como o Simão Bacamarte, que desenvolveram seus estudos na Europa.
Dessa maneira acompanhamos a criação da Casa de Orates, ou Casa Verde, onde o alienista define o seu objetivo “O principal nesta minha obra da Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal.” (p.277).
Durante o processo de seleção e classificação dos loucos, que serão vários durante a estória, notamos outra face do conto, dentre os alienados percebemos os loucos “por amor”, os com mania de grandeza que recitavam toda a sua genealogia, ou faziam discurso em latim e grego, os casos de monomania religiosa entre tantos outros . Assim, o asilo se transforma não somente em um local de enclausuramento dos loucos mas um retrato da sociedade vigente com seus extratos sociais delimitados e classificados.
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